Sonhei. Ontem. Em uma noite fria. Estranhamente calma – moro próxima a um ponto de ônibus em uma avenida movimentada, na maior cidade do país. A janela estava aberta. Havia um vai e volta de vento, aqueles sopros que parecem cochichos. Às vezes tinham clarões, não sei se eram raios ou faróis. Apenas sei que sonhei. Foi apenas um sonho, mas com sete faces.
Eu era um anjo torto que dava ordens a um poeta ao nascer, “vá ser um gauche na vida!”, dizia ao pé da orelha esquerda. Eu vivia nas sombras, junto a outros anjos que estavam na mesma situação. Um nome me vinha à cabeça: Carlos.
De repente me vi em um lugar comum. Um lugar onde a vida alheia interessa. Onde as casas espiam. Onde os desejos se espalham impedindo que a cor do céu volte a ser azul. Eram os homens correndo atrás das mulheres. Desejos, desejos, desejos. E o azul a cada segundo mais distante do céu.
Eis que passa o bonde. Todos olhando para baixo. Todos identificando apenas pernas. E quantas pernas. Eram albinas, negras, mulatas, bronzeadas, amarelas. Tantos tipos de pernas em tão pouco espaço. Um bonde quase como um metrô em horário de pico na estação Paraíso, quase uma Sé. Meu coração ficava atrelado: quantas pernas, pra que tanta gente assim? Meus olhos, apenas cumpriam a missão deles: observavam, viam, admiravam.
Havia um homem que chamou minha atenção. Era um homem de bigode. Tentei decifrá-lo. Tentei descobrir o que havia por trás do bigode, o que escondia. Queria perguntar por que não ria, o motivo da seriedade. Homem simples e forte. Quem eram seus amigos? Tinha amigos? Eram os poucos, tão raros. Era isso que trazia atrás desses óculos e bigode.
Em um momento de pânico e perdição, não sabia pra onde fugir. Comecei a me desesperar e a orar. Deus tinha me abandonado em uma cruz, e eu não era o Filho que esperavam, e Ele bem que sabia. Clamei forte a frase “Meu Deus, por que me abandonaste?”. Estava perdida, fraca e sem Deus.
Conseguinte, tentei achar uma solução. Com alguma rima de cartão. Invocando o mundo. Chamando-me de Raimundo. Não passava de rima. Solução que não vinha. Solução? Era tão vasto mundo. Mas menos que o coração.
Depois de passar por tantos extremos, chegou a hora de olhar para a noite, para a lua. O brilho, a intensa cor lunar propunha aquele conhaque. Era a fria, calada noite. Assim, o conhaque acalma o coração. Assim, abre o coração. E tudo acaba em comoção dos infernos, já estou comovida como o diabo. Era a lua, era o conhaque.
Mas isso... Isso eu não deveria nem ter te contado.
(Entrando na poesia de Carlos Drummond de Andrade - "Poema de Sete Faces")